A Defensoria Pública da União (DPU) concluiu, em nota técnica recém-publicada, que a exigência da consulta livre, prévia e informada não se aplica a comunidades tradicionais e povos indígenas isolados. Na avaliação da defensoria, a própria condição de isolamento desses povos já deve ser interpretada como uma negativa a qualquer tipo de empreendimento que possa impactar seus territórios.
A consulta prévia é um instrumento fundamental previsto na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário desde 2002. A convenção estabelece que povos indígenas e comunidades tradicionais têm o direito de serem consultados antes da tomada de medidas que afetem seus territórios, bens e modos de vida.
O defensor público Renan Sotto Mayor, primeiro titular do recém-criado Ofício de Povos Isolados e de Recente Contato da DPU, é o autor da nota. Ele reconhece a importância da consulta, mas argumenta sua inaplicabilidade no caso específico dos povos isolados:
“A consulta [prévia] é sempre fundamental. Agora, quando você fala de povos indígenas isolados, a consulta já está feita. E a resposta é não”.
Posição e arcabouço jurídico
A posição da DPU não é inédita no campo do direito brasileiro. Ela se baseia no princípio de não contato já estabelecido nos regimentos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Ministério dos Povos Indígenas. Além disso, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em 2020 e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2022 já haviam adotado a mesma posição, reconhecendo a impossibilidade de realizar consultas a povos isolados.
A nota técnica da DPU é considerada uma importante vitória por quem atua na área. Fábio Ribeiro, coordenador executivo do Observatório dos Povos Indígenas Isolados (OPI), avalia que esses documentos influenciam a atuação da Justiça Federal e representam um adensamento do arcabouço jurídico de proteção.
O entendimento de que a consulta prévia é inadequada para povos isolados está fundamentado no princípio da autodeterminação dos povos. Segundo Sotto Mayor, o isolamento é uma escolha e um ato de resistência: “Esses povos não estão isolados no mundo idílico. Eles, normalmente, estão em fuga. Eles têm o histórico de extermínio”.
O coordenador da Funai, Marco Aurélio Milken Tosta, reforçou a importância do documento: “É muito importante a gente reforçar esses entendimentos de tempos em tempos, em especial em instâncias diversificadas. Essa instância da DPU representa um fortalecimento relevante para nossa atuação e para a defesa dos direitos”.
Ameaça de genocídio e números globais
A situação dos povos isolados é crítica, como ilustra o caso da etnia Tanaru. O último membro conhecido, que ficou isolado por 26 anos, morreu em 2022 após ser o único sobrevivente de massacres ocorridos na década de 1990.
A organização não governamental Survival International estima que mais de 90% dos povos isolados do mundo vivem sob ameaça de setores extrativistas. A ONG aponta a existência de 196 povos indígenas isolados globalmente.
O Brasil registra, segundo a Funai, 115 desses povos, sendo o país com a maior quantidade no mundo. Sotto Mayor alerta para a gravidade da situação:
“O Brasil, como o país que tem a maior quantidade de povos indígenas isolados do mundo, também tem que ter uma proteção gigantesca para essas pessoas. Um erro pode gerar um genocídio”.
